domingo, 12 de abril de 2020

Ruth Monteiro: “Se for presa preventivamente, não sei o que me pode acontecer dentro da cadeia”

Em entrevista ao PÚBLICO, desde o lugar onde está escondida por temer pela sua segurança, Ruth Monteiro afirma que “esta prontidão do Ministério Público em servir poderes ínvios no país é algo que, infelizmente, estamos habituados a ver”.

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"O que acontece é que se eu for vista na rua, podem decidir espancar-me e eu não sei se sobrevivo a esse espancamento. Se for presa preventivamente, não sei o que me pode acontecer dentro da cadeia", diz Ruth Monteiro 

Ministra da Justiça do Governo constitucional da Guiné-Bissau, aquele que foi afastado pelo autoproclamado Presidente, Umaro Sissoco Embaló, recorrendo aos militares, e que ainda tem o apoio da maioria dos deputados da Assembleia Nacional Popular, Ruth Monteiro está impedida de sair do país por ordem do Ministério Público (MP), que na quarta-feira a inquiriu a propósito de uma viatura que ela não teria devolvido, quando foi afastada.

Apesar de ter apresentado provas de que entregou o carro ao seu verdadeiro proprietário, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e de o próprio MP ter reconhecido isso mesmo no seu despacho, a acusação não foi arquivada e a Ruth Monteiro foi-lhe aplicada a medida de coacção de termo de identidade e residência. E vai continuar sem poder sair do país.

“Tenho consciência que esta entrevista é muito perigosa para mim”
afirma a determinada altura, quando se refere aos “dossiers quentes” do tráfico de droga que teve entre mãos e às denúncias públicas de dois delegados do MP, Mário Iala e Herculano Sá, que estariam “a proteger os traficantes de droga”. Os dois são bem vistos pelo poder de facto, o primeiro chegou a ser nomeado director da Polícia Judiciária, e o segundo é actual coordenador da vara-crime e fez questão de estar presente na inquirição da ministra na quarta-feira.

De que é que o MP a acusa?

Neste momento, se bem entendi o despacho, não me acusam de nada. Porque a questão tem a ver com uma denúncia feita pelo Ministério da Justiça – tomei conhecimento disso na quarta-feira –, alegando que eu não terei devolvido um carro que estava ser a utilizado por mim. O carro é do PNUD e estava ao serviço de um dos organismos dirigidos pelo Ministério da Justiça, o Gabinete de Informação e Consulta Jurídica, que é um projecto apoiado por esse programa das Nações Unidas e eu entreguei-o ao PNUD, quando eles começaram a retirar os carros aos ministros e secretários de Estado. 

Devolvi o carro ao PNUD, porque eles retiravam os carros e não deixavam nenhum documento comprovativo de que tinham sido eles a levá-los. E o PNUD recebeu-o, porque lhe pertence. É esse carro que estava a ser acusada de não ter entregado ao Governo. Na quarta-feira, durante a inquirição, ficou evidente que devolvi o carro, porque levei o documento do termo de entrega, que o PNUD assinou e carimbou. Então, o MP ficou sem matéria de prova para continuar com o processo. Também me acusaram de constar como beneficiária de viaturas que o Governo tinha importado para distribuir aos membros do Governo, mas fazer parte de uma lista de beneficiários não é crime, que eu saiba. Eles teriam de provar que eu recebi o carro, porque o ónus da prova é do MP. 

Uma vez que não podiam fazer nenhuma prova nesse sentido, essa acusação foi posta de lado e no último despacho, em que me é aplicada a medida de coacção, diz apenas que o carro pertencia ao PNUD e que lhe foi devolvido como legítimo proprietário, de modo a proteger um bem que me tinha sido entregue no exercício das minhas funções. É o próprio MP que faz essa declaração no despacho, mas não tira daí as consequências que deveria tirar e não arquiva o processo por falta de legitimidade do Governo para reclamar uma viatura que lhe não pertence, não tira as conclusões que se o carro foi entregue ao seu dono não há crime, e decide aplicar uma medida de coacção com o fundamento de que sendo eu também portuguesa poderia fugir. Isto numa altura em que as fronteiras até já estão fechadas.

Acha que este processo vai além da questão da viatura?

Claro que sim, porque o Ministério da Justiça sempre soube que o carro era do PNUD e não desconheciam a falsidade da acusação. Na quarta-feira à noite e na quinta de manhã, enviaram-me dois registos áudio de um dos blogues muito lidos aqui na Guiné – e as pessoas que estão no exterior lêem os blogues porque é a forma de terem notícias do que se passa no país –, onde continuam a dizer que roubei o carro e se mostram frustrados por eu não ter sido detida. Desafiam o MP a decretar a minha prisão preventiva e o procurador-geral da República a demitir-se, caso não consiga efectivar essa prisão preventiva; desafiam os militares a calar-me porque eu disse que o poder foi assumido porque os militares invadiram as instituições e retiraram de lá os membros do Governo saído das eleições e colocaram estes a exercer o poder de facto.

Consideram as minhas afirmações uma afronta e exigem a minha prisão. Inclusive, acham que devem ser detidas as pessoas que me acompanharam e que pertencem à comunidade internacional. Falam que as decisões do MP foram tomadas seguindo ordens que vêm de fora. O que mais me preocupa é que ao atiçarem esse ódio, essa raiva, podem aparecer voluntários cá fora, quer militares, quer militantes do partido que suportou o candidato presidencial que assumiu o poder pela força [Madem-G15], a retaliarem contra mim. O grave destes vídeos é que não foram feitos por um espontâneo, são de uma entrevista feita a um alto dirigente do Madem-G15. Percebe-se por aí que não é a verdade que procuram, porque continuam a insistir que tenho de prestar contas e que devo ser presa para se investigar.

O objectivo é privarem-me totalmente da liberdade. Já me privaram de sair do país, a minha liberdade de circulação foi posta em causa, neste momento, é a minha integridade física, a minha liberdade enquanto beneficiária de protecção legal, que está em causa. Só pode haver alguma coisa por trás e que está a tentar ser camuflado com um processo judicial.

É perseguição política do Governo que exerce o poder de facto?

Eles não ignoram a verdade, não ignoram que o carro pertence ao PNUD e que lhe foi entregue – eles foram à minha casa para levá-lo, mas, quando viram a matrícula de importação temporária e que pertencia a um projecto das Nações Unidas, foram-se embora. Também não ignoram que fazer parte de uma lista de beneficiários de carro não significa ter recebido um carro. Quando se ignora a falsidade das acusações, o móbil só pode ser a perseguição política. Não há outra razão para que exista esse processo, para que eu seja impedida de viajar.

O MP é dirigido por um procurador-geral da República que é juiz-conselheiro e que assina e subscreve e, provavelmente, fez parte dos relatores do acórdão do Tribunal Constitucional que estabeleceu que medidas de coacção privativas da liberdade, que ofendem os direitos fundamentais, não podem ser decretadas pelo MP. O mesmo MP que enviou um despacho ao Ministério do Interior dizendo “esta senhora não pode viajar” e eu não viajei.

Inicialmente, quando me impediram de viajar, mostraram uma lista que vinha apenas do Ministério do Interior, quando questionados sobre a legalidade dessa lista, sem nenhum fundamento para impedir um cidadão de viajar, apareceu um despacho do MP a dar cobertura a essa ordem. O objectivo é muito claro: “Ela não pode sair do país e, se não tivermos como, vamos inventar processos”.

Não há mais nenhuma diligência do MP marcada em relação ao seu processo, isso quer dizer que podem manter o seu impedimento de sair indefinidamente?

O termo de identidade e residência não me impede de sair, obriga-me apenas a comunicar ao MP onde é que vou estar e quem é que poderá receber alguma comunicação se tiver de me ausentar da minha residência mais de cinco dias consecutivos. Mas o termo de identidade e residência e este processo podem nunca ser arquivados, isto não é nada de novo. Temos outros dirigentes deste país a quem passou o mesmo. No passado, o MP tem sido sempre utilizado para perseguir os cidadãos. Tivemos uma situação do género com a Dra. Odete Semedo, quando foi directora do Presidente interino Raimundo Pereira, em que houve tentativas de perseguição, de humilhação, etc.. Levou com um processo por desvio de dinheiros da Presidência e nunca perguntaram ao Presidente se o dinheiro tinha sido desviado ou não.

Esta prontidão do MP em servir poderes ínvios no país é algo que, infelizmente, estamos habituados a ver: chegou a minha vez. Tenho acompanhado isso em relação a vários outros, na minha qualidade de advogada, e dei o exemplo da Dra. Odete Semedo, mas há muitos outros, que têm medidas de coacção, têm acusações provisórias e definitivas e nunca têm oportunidade de ir a julgamento e provar a sua inocência. 

Eu tenho a vantagem de que o próprio MP já disse no seu despacho que o carro não é do Governo e que está na posse do seu dono, mas mesmo assim não tirou as consequências devidas.

Na semana passada lançou um pedido de socorro pela Internet, continua a achar que a sua vida corre perigo?

Esse pedido de socorro não foi lançado por mim, estava a preparar um texto que, depois, não sei como, foi parar às redes sociais. Eu não enviei esse apelo, mas enviei outro, porque achava que estava a correr riscos, tenho tido informações de pessoas ligadas à área da segurança que me dizem que corro risco de vida. Eles têm espancado a população por uma questão de restrições de circulação, os polícias estão a espancar as pessoas diariamente. 

O que acontece é que se eu for vista na rua, podem decidir espancar-me e eu não sei se sobrevivo a esse espancamento. Se for presa preventivamente, não sei o que me pode acontecer dentro da cadeia. Conheço a fragilidade do indivíduo dentro do sistema quando tem o poder público contra ele. Na quarta-feira, pensava que a pressão sobre a minha segurança tinha diminuído, estava a pensar regressar a minha casa e veio um vídeo de dirigentes do partido político que suporta o poder a dizer “temos de prender, sim”. 

E acrescentar: “Vamos prender também as pessoas da comunidade internacional que estejam do lado dela”. Essa é uma alusão directa à chefe de secção dos Direitos Humanos da ONU que me tem acompanhado nesta situação, porque a intervenção dela não é já do agrado do poder instituído. 

Estar acompanhada por alguém da comissão de direitos humanos da ONU, um observador credível, não lhes convém, porque isso inibe qualquer tentativa de uso da força ou da violência contra mim.

Onde é que está neste momento?

Não posso dizer, mas não estou em minha casa.

Este processo contra si está relacionado com o facto de saber muito sobre o tráfico de droga na Guiné-Bissau?

Realmente, não consigo encontrar outra razão. Não entendo porque, de todos os elementos do Governo, eu fui escolhida para este tipo de perseguição. Há cinco pessoas que estão incluídas numa lista de perseguidos politicamente e que tem o primeiro-ministro [Aristides Gomes] à cabeça. Tem passado muito despercebido o facto de que ele, até há mais tempo do que eu, teve de se refugiar.

As notícias que temos em relação a ele são até mais graves das que temos em relação a mim, porque, provavelmente, poderia fazer mais sombra e teria acções mais efectivas e com melhores resultados do que eu. 

A verdade é que não me considero com tanta importância dentro do Governo para ser objecto desta medida que não é aplicada aos colegas. 

A única explicação que encontro é aquela que me é dada pelas pessoas que estão a monitorar a minha segurança: tive dossiers quentes nas mãos,fizémos uma grande apreensão de droga enquanto ministra da Justiça, fizemos a denúncia de dois delegados do Ministério Público que estavam a proteger os traficantes naquelas operações que resultaram na apreensão de quase duas toneladas de droga, uma denúncia que me vi obrigada a fazer porque, caso contrário, não teríamos chegado ao julgamento. 

Tenho consciência que esta entrevista é muito perigosa para mim, estar a dizer tudo isto, mas está dito, está dito.

Falou na lista com cinco pessoas, além de si e do primeiro-ministro, Aristides Gomes, quem são os outros?

Em primeiro lugar está o primeiro-ministro, depois o ministro da Economia e Finanças [Geraldo Martins], a seguir eu e os secretários de Estado do Orçamento [José Djô] e do Tesouro [Suleimane Sidi]. Estas são as pessoas que, segundo informações credíveis, não podem sair do país.

Aqueles que assumiram o Governo de facto estão a aproveitar a pandemia para consolidar o poder?

Absolutamente, eles fecharam a fronteira antes que houvesse um único caso de covid-19 na Guiné. Aparece o ministro do Interior [Botche Candé] a dizer aos polícias que se alguém desafiar as ordens, podem bater: “Não há mãe, não há pai, não há família, batam em quem violar as ordens”. 
Das 07h às 11h as pessoas podem circular livremente, aglomerarem-se onde quiserem, juntarem-se todos nos funerais, nos toca-choros [velórios] e no mercado. A partir das 11h, há recolher obrigatório e se uma pessoa vai a caminho do hospital para levar alimentos a um doente, porque aqui o hospital não fornece comida, é espancado e há vídeos. Mas o polícia que espanca, não tem luvas nem máscara, pode infectar e ser infectado. Não há táxis, não há ambulâncias, não há toca-tocas [tuk tuks] que permitam às pessoas irem para o hospital. 

E, mesmo as pessoas que têm carro, se não tiverem livre-trânsito, vão ser espancados na rua e o carro vai ser confiscado ou, então, têm de pagar muito dinheiro para voltar com o carro para casa. Não há nenhuma medida séria para proteger a população. 

O número dos infectados que aparecem são os números que eles não conseguem esconder, ninguém sabe a real situação do contágio na Guiné-Bissau.

FONTE : tp.ocilbup@seugirdor.oinotnahttps://www.publico.pt/2020/04/12/mundo/entrevista/ruth-monteiro-presa-preventivamente-nao-sei-acontecer-dentro-cadeia-1911898

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